Olá, essa é a primeira das nossas Cartas da Oficina.
Daqui de dentro da minha oficina de criação, aqui onde eu passo horas lendo e escrevendo como um marceneiro na sua marcenaria, um pintor no seu ateliê, um padeiro entre o trigo o forno quente, daqui eu começo a te escrever essas cartas sobre arte, literatura e processo criativo, além de algumas ficções e reflexões de inspiração filosófica.
E quero começar essas cartas por um tema que me interessa tanto como ficcionista quanto como gente. O problema da verdade.
Um problema urgente de hoje, de ontem, de amanhã.
Hoje esse problema se apresenta de um modo um tanto infantilizado, e do mesmo modo como foi posto por Pôncio Pilatos: Quid est veritas? O que é a verdade?
Eu não tenho o menor interesse em cair no jogo daquele governante da Judéia e ficar preso numa rede conceitual que apenas quer, cinicamente, negar que a verdade existe.
A pergunta de Pilatos não quer saber nada, quer fugir da verdade. Não é uma pergunta, é um subterfúgio, um truque.
Digo isso para que, sem prestar atenção às distrações, façamos o que realmente importa: tentar chegar à verdade, tentar conhecer a verdade, tentar olhar para ela.
Isso é um assunto longo, um esforço longo, uma conversa que não acaba aqui. Certamente voltaremos a esse assunto, mas agora queria que você desse uma olhada atenta na imagem abaixo:
Esta é a Alegoria da verdade e do tempo de Annibale Carracci.¹
Como é uma alegoria, sabemos que guarda uma espécie de mensagem codificada, sabemos que diz uma coisa para dizer outra ou, no caso, mostra uma coisa para nos fazer ver outra.
Vemos ali a Verdade nua, que acabou de ser resgatada do fundo do poço. Ela é carregada ou amparada por um homem velho. Esse homem é seu pai, o Tempo. Olhe bem, ele tem asas porque o tempo voa.
O Tempo tirou a Verdade do fundo do poço!
Meu pai sempre dizia algo assim: "O tempo vai dizer!"
A imagem da verdade resgatada do fundo do poço não é rara na tradição pictórica, e funciona como uma resposta à frase de Demócrito (460-370 a.C.), materialista atomista como Epicuro, que disse: "na realidade, não sabemos de nada pois a verdade está no fundo do poço". Repare na semelhança entre Demócrito, Epicuro e Pilatos!
Não conseguimos ver tudo direitinho nessa reprodução de baixa qualidade, mas a mulher em quem a A Verdade está pisando, essa mulher de verde, caída, derrotada sob os pés da Verdade, tem duas caras: é a Mentira (a fraude, o engano, a hipocrisia, a calúnia). A segunda cara da Mentira, está ali escondida na sombra da primeira e é a face de um animal.
As duas figuras maiores à esquerda e à direita da cena, bem estruturadas, sem o movimento das demais, são como duas colunas, que sustentam arquitetonicamente a cena.
À direita, o Final Feliz (bonus eventus).
À esquerda, a Felicidade, que segura um caduceu alado significando a paz, e uma cornucópia significando a abundância.
A mensagem codificada nessa Alegoria, a sua moral simplificada é: "o tempo vai trazer a verdade à tona, e a verdade felizmente vencerá a mentira".
Veja abaixo um desenho do mesmo Annibale Carracci representando o Julgamento de Páris. Trata-se de um esboço para uma obra que não foi realizada, mas, pela semelhança formal e pela coincidência de datas entre esse desenho e aquela pintura, podemos supor que o seu plano era fazer um díptico sobre o bom e mau juízo, ampliando o discurso alegórico que já fica claro na sua pintura.
A alegoria de Carracci será mal compreendida se ficamos apenas apegados à ideia esperançosa de que o tempo de qualquer modo há de trazer a verdade à tona.
Para entender mais profundamente essa alegoria, é preciso prestar atenção a um detalhe da imagem: A Verdade nua traz na mão um espelho para o qual olha com serenidade.
Imagine que a cena tem algo de dramático.
Um resgate desses, uma vitória dessas!
Mas a moça está serena e olha o próprio rosto refletido no espelho que trouxe consigo do fundo do poço.
Por que a Verdade carrega um espelho?
Por que olha o próprio rosto?
Não vou dar minha resposta aqui porque o encanto deste texto, eu acredito, deve estar em soltar tua mão agora, te deixar só com essa pergunta: Por que a verdade tem um espelho na mão e contempla o próprio rosto?
Aliás, não vou sair assim desse jeito.
Te deixo em companhia de um grande poeta, Joseph Brodsky, que pode te ajudar nesse reflexo, ou melhor, nessa reflexão.
Num ensaio chamado Less than one, Menos que um, Brodsky escreveu esse espelho, quer dizer, esta pérola:
"A verdadeira história da consciência começa com a primeira mentira de cada pessoa".
コメント